Ainda era verão quando saí pedalando de Oslo com alguma esperança de ver as luzes do norte na faixa do Círculo Polar Ártico. Havia um debate interno que confrontava o desejo de encontrar a Aurora pela primeira versus o quanto eu estava preparado para os ventos polares e baixas temperaturas do norte da Noruega. No dia 21 de agosto eu recebi uma mensagem que me deixou ainda mais animado. O Guy Geffen, um amigo da minha irmã que vive na Finlândia, estava indo guiar uma expedição fotográfica no norte da Noruega dentro de um mês e me convidou para me juntar a eles. Em outras palavras havia uma previsão de aurora para 30 dias a partir daquela mensagem e, com um profissional por perto as chances de vê-las eram bem maiores. Combinamos de nos encontrar em Tromsø no dia 22 de setembro e comecei a pedalar sentido Círculo Polar Ártico.
Com a experiência de travessia de altas montanhas que mais de dois anos de viagem de bicicleta te credencia, posso dizer que deixar para trás o passo Sognefjellet foi bem difícil. Os 1400m de altitude nem se comparam com os quase 5000m da Cordillera Blanca, no Peru, mas o ganho de altimetria foi casca grossa. Dois dias de 20 km de subida até começar a descer. No pico, mesmo ainda sendo verão, começou a nevar. Os glaciares e aquela vegetação típica de alta montanha formavam uma paisagem daquelas que vale cada gota de suor.
Uma semana depois de cruzar essa montanha, cheguei a Trondheim, uma das maiores cidades da Noruega. De lá decidi pegar um trem até Bodø para poder chegar a tempo e encontrar o Guy. Desta forma eu cortaria uma área menos atraente do país para poder passar mais tempo nas Ilhas Lofoten, onde eu tinha maior interesse. Como um anfitrião que me receberia na cidade não respondia minhas mensagens, decidi ir para a estação e tentar um trem noturno. Lá tive um encontro fantástico!
Os poloneses Marcyn e Agnieszka com sua pequena e adorável filha Hanna me viram com a bicicleta toda carregada e vieram conversar. Marcyn é apaixonado por cicloviagens apesar de nunca ter empreendido uma grande aventura. Ficamos ali papeando, contando histórias e trocando sorrisos. Tiramos uma foto juntos e nos despedimos. Como o trem partiria apenas na manhã seguinte, eu comecei a procurar no mapa lugares onde poderia acampar. Na Noruega isso não é problema mesmo em cidades grandes, mas Marcyn, que sabe como os cicloviajantes de grandes expedições vivem, voltou e me fez um convite irrecusável.
“Estamos hospedados num hotel do outro lado da ponte. Queremos presenteá-lo com uma estadia por admiração à sua coragem de viajar o mundo assim.” Disse o polonês.
É incrível como conexões e amizades nascem mais fluídas em apenas alguns instantes de olhos brilhando e sorrisos genuínos. Essa comunicação não falha nunca. Especialmente no fim de um dia lindo de pedal. Aceitei e os agradeci muito.
Para minha surpresa o hotel era um tanto sofisticado e o gostinho foi ainda melhor pois era a primeira vez que eu dormiria em uma cama na Noruega. Como o país é um dos países mais caros do mundo e o camping selvagem é permitido por lei, não tinha porque gastar com hospedagem.
Na manhã seguinte tomamos café da manhã juntos. Eles se impressionaram com o tanto que eu comia. Os hábitos alimentares mudam durante uma grande viagem e também havia ali uma oportunidade diferente. Imagine só um cicloviajante de baixo orçamento em um desses buffets de café da manhã de hotel de grife. Não fiz cerimônias mesmo! Enquanto conversávamos, Hanna fez um desenho em meu diário e depois nos despedimos com mais uma foto e um abraço caloroso.
Uttakleiv
Desci na estação de Bodø, acampei numa praia e dia seguinte peguei o ferry para Møskenes, nas ilhas Lofoten. Já dentro do Círculo Polar Ártico comecei a pedalar pela Northern Lights Route, lugar que até o presente momento, considero o mais bonito por onde já cicloviajei. O outono estava começando e as folhas mudando gradualmente de cor. Túneis de árvores amarelas, por ora avermelhadas iam dando um outro tom para a viagem. Estepes extensos com montanhas imponentes para onde hikers marchavam com suas mochilas carregadas. O mar aberto da Noruega com as gélidas águas do Atlântico Norte em ambos lados da ilha, estradas impecáveis e praias de areia branca com águas esverdeadas. Como eu já estava dentro do Círculo Polar Ártico, comecei a monitorar o céu despretensiosamente na chegada da primeira noite.
Eram dias muito agradáveis! Há mais de um mês na Noruega já havia aprendido a baixar a guarda e pedalar mais relaxado, já que os motoristas quase param na pista se não conseguem ultrapassar com segurança. As noites eram tranquilas, com os sons da natureza e sem os riscos e preocupações que temos ao acampar em qualquer outro país. Não fazia muito frio e a previsão para aquela semana em Lofoten era de dias ensolarados e céu aberto. Mais que agradáveis, eram dias de plenitude, de leveza e emoção.
Por intuição, saí do lado leste da ilha e a cortei por dentro rumo a oeste para visitar uma praia chamada Uttakleiv. Deixei alguns bucólicos lagos para trás onde nas margens muitas ovelhas bebiam água. Atravessei um estreito túnel e cheguei a entrada desta praia. Com um estilo bem rural, peguei uma estradinha de terra e cheguei a uma porteira. Para minha surpresa havia uma placa dizendo que era necessário pagar para pernoitar ali e que o ticket (cerca de 60 reais) se comprava em uma máquina. Não gostei muito da ideia, mas essa era apenas a primeira vez que eu pagaria para dormir na Noruega. Ao estilo norueguês, não havia fiscalização ou nenhum funcionário no local, você paga com dinheiro ou cartão de crédito e entra livremente, sem controle. A cobrança é para manter banheiros e a grama baixa para justamente acampar por lá. E a confiança é apenas mais uma forma de respeitar e se sentir respeitado.
Após deixar a cabine eletrônica com meu comprovante na mão, desci alguns metros empurrando a bicicleta e me deparei com aquela praia que jamais sairá do meu coração. Um extenso gramado bem verde - onde ovelhas pastavam livres balançando seus sininhos - terminava em uma enorme montanha que demarcava nas nuvens os seus limites. Nas minhas costas um outro alto penhasco determinava a extensão daquela exclusiva praia. Abaixo do perfeito e plano gramado emendava a branca, gelada e estreita faixa de areia. Arrisquei uma caminhada descalço até o mar, mas voltei rápido para secar os pés e calçar meias e botas.
Haviam 2 motorhomes e 4 barracas, todos bem distantes um dos outros, o que dava a sensação da praia ser apenas sua. Cozinhei meu jantar: Arroz e verduras refogadas com molho de soja. Comia enquanto o sol desaparecia no horizonte, como se fora derreter naquelas congelantes águas.
Sonhando acordado
Os dias ainda eram bem longos e havia claridade até umas dez da noite. Eu estava cansado após mais de 70 km pedalados e também estava ficando frio, mas não queria deixar de contemplar aquele lugar que minutos mais tarde imprimiria marcas inesquecíveis no meu coração.
Apesar da previsão de Aurora ser para uma semana mais tarde, algo me dizia que eu deveria estar alerta. Decidi então tirar um cochilo e acordar de madrugada para ver se ela apareceria. Enquanto me preparava para entrar na barraca, ainda com as luzes do crepúsculo do entardecer, olhei para o céu e me arrepiei. Vi algo que meus olhos não conheciam. Uma grande e estranha onda esbranquiçada dançava no céu. Era como ver enormes e compridas meduzas nadando lentamente em águas cristalinas. Fiquei estarrecido, paralisado, sem conseguir pensar. Não sei se o sorriso abriu antes da primeira lágrima escorrer. Quando me dei conta do que estava acontecendo corri para montar o tripé e ajustar a câmera. E no primeiro clique o verde explodiu no visor após seis segundos de exposição. Foi como voltar a ser criança. Sensação que só pode ser comparado à essa época de vida, quando experimentamos os primeiros sabores. Da emoção fui à euforia. Enquanto chorava, eu sorria e agradecia em voz alta, afinal um sonho de infância se realizava por meio de uma paixão de menino: a bicicleta.
Enquanto via o vulto da bicicleta resplandecido pela luz da barraca, as cores do entardecer sobre o mar se unificavam com a dançante paleta da Aurora Boreal no céu. Momento em que eu não sentia mais nada além de uma profunda paz. Não havia mais sono, cansaço, nem frio. Fiquei ao relento até quase 4h da manhã fotografando, fazendo timelapses e incrédulo por ter sido surpreendido pelo fenômeno natural naquele lugar irretocável, inesquecível.
Com o coração esverdeado, dias depois encontrei o amigo da minha irmã e de carro fotografamos mais Auroras em Tromsø e depois fomos até a região de Abisko, na Suécia e Rovaniemi, na Finlândia. Mas a minha primeira noite com a Aurora, chegando pedalando me trouxe a sensação de ter me apaixonado pela primeira vez. Fui dormir com o coração aquecido, com um sorriso que saía do saco de dormir, atravessava a barraca e encontrava o céu.
Para a minha surpresa, nas várias noites subsequentes em que fui premiado com mais Auroras até deixar o Ártico, a mesma sensação reincidiu. Cada Aurora tem sua história, mas independente da latitude ou longitude que estejas, a sensação e beleza de despertar para um novo amor volta a acontecer com a certeza que o sol vai brilhar à meia noite no inverno norueguês.